UM
DIA A CASA CAI
Sargento Raimundo telefonou ao Cícero:
- O bicho está pegando! O Capitão quer falar comigo
amanhã; na primeira hora do expediente.
Vamos agora ao Jatobá. Lá conversaremos
melhor.
Montou na moto e partiu ao
sítio Jatobá, situado à margem direita do rio Pajeú, município de São José do Egito, porém bem
próximo de Tuparetama.
Raimundo comprou o sítio há seis anos. Tinha especial apego à
região, ali nasceu e morou até a adolescência. Furou poços, plantou frutíferas
e cercou bem a propriedade. A safra de caju está iniciando e os pés de manga
espada estão carregados de frutos verdes. Abriu a porteira, avistou um caju
maduro ao alcance das mãos e foi coletá-lo. Olhou em direção ao centenário
mulungu. A presença da árvore pesou na
decisão de comprar o terreno. Quando foi ver a terra para compra-la, avistou xexéus-de-bananeira se alimentando
do néctar das flores do mulungu. Tinha
grande admiração pela ave e quando menino se sentia frustrado por nunca tê-la capturado. Faz plano que após a aposentadoria, deixará as atividades ilegais e trabalhará apenas no
sítio. Quando estava chupando o caju, Cícero apontou.
Raimundo fala:
-Tenho boas razões
para pensar que o Capitão quer
falar comigo sobre a agiotagem que pratico no quartel e na cidade. Posso até
afirmar que o agiota é você, eu apenas indico, porém ele não vai acreditar.
Ninguém pode provar, mas todo mundo desconfia que você seja apenas meu testa de
ferro. Segundo informações, os precedentes dele não são animadores; quando
serviu em Custódia, um dia, reuniu toda tropa e disse que quem estava devendo a
um Cabo dinheiro de agiotagem não deveria pagar e qualquer reclamação poderia
provocar expulsão do criminoso da PM e a abertura de processo para coloca-lo na cadeia.
Cícero fala:
-Está comigo a planilha com a contabilidade dos
empréstimos; se é assim o procedimento do Capitão Olavo, o prejuízo será
grande. Pior seria se ele desconfiasse do tráfico de drogas.
Raimundo:
- O tempo é muito curto para pensar em assassina-lo.
Matar um Capitão da PM não é como
eliminar um pé rapado, mas a hipótese não pode ser descartada.
Raimundo lembrou o caso de Zé Aragão, rico fazendeiro: ele não queria pagar um dinheiro emprestado e
Raimundo entendeu que seria mais fácil receber da viúva. O caloteiro e uma
amante casada tiveram mortes consumadas na saída de um motel. Raimundo, deliberadamente,
comandou a equipe policial que fez a ocorrência do fato. O sucesso do plano se
completou quando familiares do morto mataram o marido da amante e a viúva
reconheceu o cheque e quitou a dívida.
Depois que a
quadrilha de Raimundo entrou no ramo de tráfico de cocaína, assassinatos de consumidores falidos e traficantes aliciados pela
quadrilha, que por vários motivos são
condenados a morte. São comuns esses homicídios em São José do Egito. Recrutar mão de obra nova ao
tráfico de drogas é muito fácil.
Um popular que gosta de acompanhar notícias policiais contou 10 homicídios de
janeiro a outubro desse ano com as mesmas
características: os assassinos são sempre uma dupla encapuzada montada
em moto, as vitimas são atingidos por muitos tiros, as
armas usadas são de grossos calibres, a polícia nunca chega no momento
oportuno e nenhum desses homicídios foi esclarecido. A mais impressionante
dessas mortes foi a do jovem de 17 anos abatido com 21 balas de pistola calibre 380 dentro de
sua própria casa e na presença de familiares. A polícia espalha que é briga de
gangs. O popular acha improvável
bandidos pés de chinelo donos de armas poderosas e exímios atiradores. Desconfia
que os matadores sejam policiais, porém, com medo, não comenta essa
possibilidade.
Ninguém suspeita de que esses homicídios tenham relação com Sargento Raimundo, embora os crimes aconteçam sempre em seus plantões noturnos. A quadrilha é organizada
em níveis, apenas Cícero sabe que Raimundo é o chefe.
Raimundo entrou na PM aos 20 anos de idade. Logo
pegou fama de corajoso e decidido. Quando um Juiz resolveu intervir no presídio
de Caruaru após uma guerra sangrenta
entre presos, Raimundo foi convidado à missão. O tenente PM interventor escalou
Raimundo para ser o Chefe de Disciplina, dando-lhe carta branca visando o fim do controle do
presídio por reclusos. A pedido de Raimundo foi construída uma cela especial
para torturar presos e que tinha como única entrada e saída o escritório da
Chefia de Disciplina. A tortura era sempre uma surra; Raimundo e outro soldado
mandavam o preso ficar apenas de cueca e de surpresa recebia um açoite nas
costas produzido por uma vara de cerne de pau-d’arco-amarelo de 80 cm de comprimento e
2 cm de diâmetro. A primeira pancada, dada no lombo, era tão forte e doída que esmorecia qualquer ser humano e a surra só terminava quando o preso
desmaiava. Essa vara ganhou o apelido de
“direitos humanos”. Bastava um preso reivindicar esses direitos para que
a vara fosse chamada. Foi um sucesso a intervenção, apelidaram o presídio de
“convento” e os presos chamados de
“freiras”, tal a paz reinante. Todos
presos novos eram recebidos com esse espancamento, com exceção daqueles que chegavam recomendados por alguma autoridade. Os encarcerados sem
recursos eram os que mais apanhavam. Se livre o pobre sofre, dentro da cadeia é
muito pior. Com o passar do tempo,
Raimundo enxergou a oportunidade de ganhar dinheiro no presídio, rotineiramente
com pequenos empréstimos a juros e venda de mercadorias a presos e se aparecesse uma oportunidade
praticava extorsão. Também era usual o assédio sexual feito por toda tropa a
mulheres parentes de presos. Um bárbaro
assassinato de uma adolescente, filha de preso, praticado por um
carcereiro rejeitado por ela, desencadeou a volta de toda equipe ao quartel da PM. Confirmou-se: corno brabo é um desastre na certa.
Mesmo não trabalhando mais na penitenciária, Raimundo perdeu pouco dinheiro
nessa mudança; a cobrança era truculenta aos parentes dos presos devedores.
Raimundo ordena:
- coloque um motoqueiro para vigiar o Capitão e sua
família a partir hoje. Claro que não teremos informações para reverter minha
posição momentaneamente, mas a guerra será longa e ele ganhará apenas essa primeira batalha.
A autoconfiança de Raimundo não é mera ilusão; ela se sustenta numa logística perfeita. A
quadrilha consegue as informações que quiser da cidade e tem contatos valiosos nos municípios vizinhos.
Às três horas da manhã, Raimundo recebe telefonema
de Cícero:
- o micro-ônibus que transporta estudantes que fazem
faculdades em Patos foi assaltado antes de Brejinho. A mulher do Capitão é uma
das vítimas. O motorista do micro-ônibus é o Pedro, que rapidamente deixou o
pessoal de São José do Egito e foi para Tabira.
Raimundo não conciliou mais o sono. Às cinco horas
partiu de automóvel para Tabira para falar com Pedro.
O motorista contou pormenores do assalto: os
passageiros vinham de uma festa de formatura, todos muito chiques; foram quatro
assaltantes jovens; levaram dinheiro, joias
e celulares, porém o fato mais grave foi o estupro da mulher do Capitão.
Um dos
bandidos escolheu para estuprar a sobrinha da esposa do Capitão e ela se
ofereceu para substituí-la. Um dos malfeitores disse que tinha sido convidado
para um assalto e não para estuprar mulheres. O ladrão que parecia ser o líder
do bando insistiu no estupro, porém aceitou a troca sugerida. Como os
assaltantes falaram da Serra de Teixeira, Pedro acha que eles são de Patos. Ao menos dois criminosos
tinham sotaque paulistano. Raimundo pediu segredo da visita.
Raimundo telefona a Cícero e ordena contatar
receptadores de objetos roubados e traficantes de drogas em todas as cidades da
região. Ele sabe que vai ser fácil a polícia desvendar esse crime, porém quer
se adiantar e ser o responsável pela prisão dos meliantes. Se o plano der certo
o Capitão deixará de importuna-lo.
Antes das oito horas Raimundo chegou ao quartel.
Toda tropa já sabia do acontecimento. Tal o esperado, o Capitão não compareceu
ao expediente. Ás dez horas o Tenente chamou
Raimundo. Estava em sua sala um homem de nome Arthur, Sargento da PM lotado em
Recife, que foi apresentado como irmão da mulher do Capitão e pai da moça vítima do assalto.
Também presente Pedro, o motorista assaltado. O Tenente ordena a Raimundo que prepare uma viatura, que
irão fazer uma diligência no local do assalto.
O Tenente foi no banco carona e Raimundo, Pedro e
Arthur no banco traseiro. Nota-se que Arthur está perturbado de ódio ao
extremo.
Arthur diz:
- Muitas
famílias que migram ao Sul acham que mandando de volta ao nordeste filho
bandido, haverá regeneração, bem como não será executado por policiais ou
rivais do crime. Porém, a maioria não se
emenda e bandido que aqui atua dessa maneira é morto rapidamente.
Cabo Antônio, o motorista diz:
- Esse tipo de marginal deveria ser castrado.
Raimundo, confiando no sentimento da vingança
entranhado na cultura nordestina, responde insuflando Arthur:
- pode ter certeza, esses não ficarão vivos e devem
sofrer um pouco para morrerem. Lembro-me de um caso em Caruaru: Um homem de
meia idade alugou a casa de fundos
e seduziu uma garota de treze
anos de idade, filha do senhorio. Os tios da menina se reuniram, prenderam o
abusador, e antes de queima-lo vivo amarrado em pneus de caminhão, caparam-no.
Toda polícia sabia quem eram os autores da morte, porém ninguém moveu uma palha
para processa-los. Ficou por isso mesmo.
Vasculharam bem a área, mas não conseguiram nada
importante à elucidação do crime. O tenente diz que o melhor é voltar, chamar
todas as vítimas visando alguma pista e fazer um inventário completo e minucioso
dos objetos roubados. Raimundo assistiu o depoimento das vítimas. O tenente
decidiu que no dia seguinte, pela manhã, iriam a Patos pedir
ajuda à polícia paraibana. Raimundo pediu o número do telefone de Arthur. Às
vinte e uma horas Cícero telefona dizendo que em Flores, segundo um traficante,
um pessoal de Afogados da Ingazeira com
essas características o procurou para trocar cocaína por joias, mas como não
tinha a droga no momento e está esperando para amanhã um carregamento, trocaram maconha
por uma joia e acertaram que telefonariam confirmando a chegada da cocaína.
Raimundo imediatamente telefonou ao
Tenente pedindo para não acompanha-lo a Patos pois tinha uma emergência em seu
sítio. O tenente concordou.
Raimundo pegou
Cícero e partiram para Flores. Junto com Mário, o traficante, planejou a
cilada para capturar os meliantes: O local da prisão será uma tapera abandonada
situada a dois quilômetros do asfalto. Cícero entrega a Mário uma porção de cocaína tipo “escama de peixe” que
será o chamariz para leva-los à emboscada. Mário liga ao chefe da quadrilha
combinando o negócio para onze horas de amanhã.
Vinte minutos após o Tenente partir para Patos,
Raimundo telefona a Arthur dizendo que tem informações seguras de um comprador
de ouro em Flores que uns rapazes de Afogados combinaram para vender joias hoje
e o convida à diligência. Arthur
prontamente aceitou o convite. Raimundo pede-lhe que vista uma roupa de polícia
visando a camuflagem na Caatinga.
Chegam ao local preparado à emboscada às nove e meia e assim terão tempo suficiente para trabalhar os
pormenores da ação. De dentro da tapera Raimundo escolheu os lugares menos visíveis ao bando para aproximação da
polícia no momento da abordagem. Fizeram uns remendos na tapera, deixando
apenas uma abertura como saída rápida. O fator surpresa e o maior poder de fogo será
o grande trunfo da polícia. Testaram os equipamentos de rádio e os quatros se
acomodaram nos locais escolhidos para cada um.
Combinou-se com o traficante, que ele, acompanhado
de um companheiro, se encontrará com os bandidos no asfalto, exibirá a amostra da cocaína e os atrairá à tapera. Chegando
à tapera averiguará as joias, fornecerá a droga para experimentação e dirá que
buscará a quantidade de cocaína acertada na negociação. E assim foi feito.
Quando o traficante
saiu, os bandidos ficaram ao redor de um prato preparando a cocaína para
consumir. Raimundo comunica aos
companheiros que é chegado o momento da abordagem, se aproxima da tapera e
grita:
- É a polícia! Estão cercados! Saiam de mãos para
cima ou vai acontecer o pior!
Os bandidos em primeiro momento ficaram imóveis,
trocaram palavras e como todos estavam armados com revólveres decidiram-se pelo
confronto. Saíram da tapera atirando para todos os lados. Três foram abatidos.
Um, num salto circense, alcançou uma moita de mufumbo e desapareceu da vista de
todos. Conferindo o estado dos três rapazes caídos, apenas um ainda respirava. Raimundo deu um tiro de misericórdia na cabeça no rapaz
ainda vivo. Sem perda de tempo iniciaram a caçada ao fugitivo.
Raimundo vasculha o local em que o bandido
desapareceu e encontra sangue, sugerindo grave ferimento. Uma juriti voou assustada de um fechado
partido de favela entremeado de jurema-preta, indicando que fugitivo está no local.
Raimundo grita:
- Os outros estão mortos, você tem a oportunidade de
sair vivo, se entregue.
O homem se rende. Pelas informações colhidas, Raimundo
deduz que o sobrevivente é o líder do bando. O ferimento no braço ainda
sangra e o meliante está esmorecido. Raimundo lhe dá um pouco d’água para reanima-lo e o algema abraçado em tronco de
angico distante cento e cinquenta metros da tapera. Raimundo pergunta pelas joias e ele diz que não estão consigo. O
soldado fica vigiando o preso, Raimundo e os outros vão revistar os mortos e
nada encontram. Confabulam sobre a
situação e decidem que a melhor solução é matar o sobrevivente, enterrar os
quatro em vala comum e incendiar o automóvel da quadrilha em lugar diferente. Raimundo
pega no porta-malas do seu carro duas picaretas, uma pá e um enxadeco e
ordena que Cícero inicie a escavação da vala.
Raimundo volta
com Arthur ao local do preso interroga
o bandido sobre as joias:
- Temos certeza que antes do tiroteio você estava
com as joias. A demora de socorro médico pode significar sua morte. Dizer logo
onde estão as peças é mais sensato, sem elas não sairemos daqui.
O preso
confessa:
- no início da fuga joguei-as em uma moita de
alastrado perto de um grande pé mandacaru.
Arthur
enxerga uma bolsa e com uma vara a retira da moita de alastrado. Observando as
joias reconhece a pulseira de ouro da filha. Retiram a algema do preso e o guia
para o local onde estavam os cadáveres.
Quando chegam ao local
Artur diz ao bandido:
- Estuprador da sua
laia não fica vivo!
O bandido ainda tenta
correr, mas, debilitado, não consegue e Arthur acerta-o com três tiros.
No outro dia cedo
Raimundo é chamado à sala do Capitão. Na presença de Arthur parabeniza-o pela
missão e que depois falaria com ele a respeito de outras questões. Trata-o como
amigo e não um subordinado. Raimundo convida os dois para almoçar um guiné em seu sítio. Prontamente aceitam.
Combinam que ele iria agora e que Cicero os procuraria ao meio dia para
guia-los.
Raimundo segue ao
sítio. Tinha prendido três guinés e iriam à panela. Tinha orgulho da sua rapidez para tratar e cozinhar aves.
Ao chegar ao sítio encontra
dois rapazes colhendo mangas. Solta um grito de alerta e um dos homens correu
passando por baixo da cerca de arame farpado. O outro vem ao seu encontro,
nota-se um adolescente de uns quinze anos. Diz que estavam com fome e resolveram
comer umas mangas quase maduras. Raimundo, sob o domínio da soberba, resolve lhe dar
uma lição que sirva como aviso: pega o menino pelo braço fortemente, saca a
pistola, esfrega a arma no rosto do
garoto, com um empurrão o faz cair e aos chutes expulsa-o da propriedade.
Ao
terminar de tratar as aves, vê que falta colorífico, para ele um tempero
essencial. Vai a Tuparetama compra-lo. Quando abre o portão recebe um tiro no
peito. O estampido é de calibre 12.
Ainda enxerga o garoto espancado horas
antes. Saca a pistola, mas a vista fica turva. Pressente a morte.